Clima
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Por Vanessa Oliveira, do Um Só Planeta

A Covid 19 balançou as estruturas do mundo. Cada pessoa atravessou os anos pandêmicos ao seu modo. A jornalista brasileira Miriam Leitão transformou o confinamento em uma cruzada amazônica que culminou no recém-lançado livro "Amazônia na encruzilhada: o poder da destruição e o tempo das possibilidades", pela Editora Intrínseca. No período, revisitou antigas memórias e reportagens em que a floresta foi tema central, mergulhou em livros e artigos científicos sobre o bioma e passou incontáveis horas em webchamadas com alguns dos maiores especialistas e referências em meio ambiente, clima e questões indígenas.

Nomes como o cientista Carlos Nobre, a ministra do Meio Ambiente (MMA) Marina Silva, o biólogo e atual Secretário-Executivo do MMA, João Paulo Capobianco, Paulo Moutinho, do Ipam, Beto Veríssimo, cofundador do Imazon, Larissa Rodrigues, do Instituto Escolhas, o antropólogo Uirá Garcia, lideranças Munduruku como o cacique-geral Arnaldo Kaba e Alessandra Korap, coordernadora da Associação Pariri, Tasso Azevedo, do MapBiomas, entre tantos outros, povoam a obra em diálogos imperdíveis que revelam as batalhas travadas na construção de políticas públicas e no combate a ilegalidades na floresta.

“O monitoramento e o império do lei são o caminho mais efetivo”, assegura Miriam, para o enfrentamento à série de ilegalidades que ameaçam a floresta, desde o avanço da motosserra que transforma áreas pristinas em pasto e alimenta o tráfico de madeira, até o garimpo ilegal de ouro, que deixa feridas abertas em áreas públicas e terras indígenas (TIs), contaminando rios e vidas nas aldeias e comunidades ribeirinhas. Todos caminhos irracionais e antieconômicos, afirma a jornalista sobre as atividades predatórias.

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Em entrevista ao podcast Entre no Clima do Um Só Planeta, Miriam Leitão conta por que é na Amazônia que o Brasil e o mundo decidirão o futuro. Com olhar encantado para as ciências e saberes da floresta, ela conduz o leitor a uma aventura de conhecimento tão crítica quanto envolvente para entender o papel da floresta dentro da teia ecossistêmica e climática do mundo. E mostra de que forma um círculo virtuoso de política pública pode reescrever essas desventuras em série, como o país já foi capaz de fazer no passado.

Em 2004, quando os índices de desmate batiam os 27.772 km², o governo criou o mais bem-sucedido instrumento de combate à perda florestal, o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), responsável pela redução de 83% no desmatamento entre aquele ano e 2012 – levando a uma queda de 27.772 km² para 4.571 km² no período. Nessa toada, Miriam comemora a janela de oportunidade que o novo governo Lula reabre em prol da Amazônia e que já traz boas novas, como a redução de 22% no desmatamento entre agosto de 2022 e julho de 2023 e a queda de 61% de janeiro a outubro deste ano.

Seca na Amazônia: dezenas de barcos encalhados em marina na cidade de Manaus. — Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
Seca na Amazônia: dezenas de barcos encalhados em marina na cidade de Manaus. — Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Urgência

Mas é preciso agir rápido. Além da floresta estar se aproximando do chamado ponto de não-retorno, a partir do qual ela perde sua capacidade de se regenerar e entra em processo de savanização (que já ocorre em algumas partes do bioma), Miriam alerta para um risco menos falado: o ponto de não-retorno social. Ela usa o termo para se referir a populações amazônicas cooptadas por atividades ilegais que fazem girar a economia de municípios inteiros na região e que ganharam corpo, força e armas políticas com o desmantelamento dos órgãos ambientais e importantes instrumentos de controle, como o próprio PPCDAm, durante o governo Bolsonaro.

A urgência do país enfrentar esses desafios é escancarada nas queimadas e na atual seca histórica que se abateram sobre a Amazônia, dados os anos consecutivos da derrubada de árvores e incêndios criminosos, e intensificadas pela emergência climática e o fenômeno El Niño. “Amazônia sem água é um futuro distópico que já estamos visitando”, diz Miriam, destacando que o Rio Amazonas despeja no mar 20% da água que todos os rios do mundo jogam em todos os oceanos.

A gente não tem ideia de quanto a floresta é imensa, e ao mesmo tempo, quanto que ela é frágil. Se a gente está agredindo a floresta, o risco dela entrar em desequilíbrio e mudar sua natureza é muito grande.
— Miriam Leitão em entrevista ao Um Só Planeta.
Livro "Amazônia na encruzilhada: O poder da destruição e o tempo das possibilidades" — Foto: Divulgação
Livro "Amazônia na encruzilhada: O poder da destruição e o tempo das possibilidades" — Foto: Divulgação

Na seca atual é como se a água tivesse sumido para nos dar um susto e dissesse “preste atenção, porque eu não sou um recurso renovável, não dê como garantido que eu estarei sempre aqui”, diz ela, que não vê com bons olhos a possibilidade de exploração de petróleo na Foz do Amazônia. “Eu acho um equívoco. E até um equívoco econômico. A gente tem que estar no mundo. O cenário mais provável [dentro de alguns anos] é um mundo em descarbonização acelerada, de abandono de fontes fósseis”.

Além disso, também considera a eventual liberação uma ameaça às áreas ambientais frágeis e um erro do ponto de vista diplomático. “Se o Brasil quer ser um soft power, e se realizar como potência ambiental, não pode cravar uma exploração de petróleo do lado da floresta. Não adianta ficar discutindo distância, estamos falando do mar da Amazônia”, diz Miriam, criticando mais uma encruzilhada em que o Brasil precisará escolher que caminho seguirá.

A encruzilhada diante do Brasil é entre civilização e barbárie. Não podemos mais manter a ambiguidade em relação à floresta, porque sua destruição nos carrega para um projeto de inexorável subdesenvolvimento, degradação diplomática e demolição institucional. O que foi ficando óbvio nos últimos anos é que não é que o Brasil precisa proteger a Amazônia. É a Amazônia que protege o Brasil.
— - Miriam Leitão, em trecho do livro “Amazônia na Encruzilhada", lançado pela Editora Intrínseca.

A floresta encanta

Em meio às suas incursões pelas estradas físicas e intelectuais que percorreu como repórter e aprendiz incansável, a autora revisita suas experiências com a floresta e brinda o leitor com passagens encantadas onde a floresta toca o imponderável. Em uma delas, a jornalista lembra de quando entrou na cavidade do tronco de uma gigante sumaúma para fazer uma gravação para a TV. A árvore é considerada sagrada pelos povos tradicionais e conhecida por suas propriedades anti-inflamatórias e diuréticas. Aquele exemplar tinha mais de 500 anos de idade, o que a deixou instantaneamente impressionada.

E eu entrei, estava muito cansada, até me ajudaram, eu estava parecendo um saco de batata. E aí eu fiquei lá dentro e de repente eu comecei a pensar, meu Deus, quanta coisa aconteceu com essa árvore que tem mais de 500 anos...Tem a idade do Brasil! Quantos animais estiveram aqui? Quanta vida esteve aqui, quantos seres passaram por aqui? Que ser é esse? Eu comecei a pensar. E aquilo foi me dando uma conexão com a árvore. Eu não sou esotérica, mas era visível. Era impossível não sentir. Eu sou um ser vivo, e ela é um ser vivo muito mais velho do que eu. Perguntaram se eu precisava de ajuda para sair dali e eu disse ‘estou bem, estou ótima, e eu pulei no solo da Amazônia, como se eu não tivesse a idade que eu tinha, parecia que eu era uma menina, começando a vida. Perto daquela árvore, eu era uma menina. Não sei muito bem explicar, mas eu tomei uma carga de energia lá dentro que foi impressionante. Isso é o inexplicável, o imponderável.

Miriam diz que tem esperado há mais de duas décadas por um ponto de encontro, a conciliação entre a questão ambiental e a questão econômica, porque sabe que a lógica econômica pode ser usada para entendermos o valor que a floresta tem, embora nem tudo possa -- e deva -- ser reduzido a uma equação matemática. “Os economistas, quando eles chegam, eles dão outra racionalidade no debate. É importante que eles cheguem. É importante que todos cheguem, de todas as áreas, mas é importante que todo mundo entenda que a questão ambiental ela é de risco existencial para o planeta e para todos nós”.

O caminho próspero e sustentável existe e, como destaca a jornalista no livro, se traduz no combate ao desmatamento, grilagem e crime organizado, no rastreamento do ouro e da madeira, na transparência das cadeias de produção agropecuárias, no estímulo à sociobioeconomia, na valorização ecossistêmica e restauração de áreas degradadas, em destinar as florestas públicas ainda não destinadas, na expertise tecnocientífica unida aos saberes ancestrais, que orientam um desenvolvimento equilibrado, na proteção dos povos tradicionais e preservação dos seus modos de vida e meios de sustento, incluindo a aversão à tese do marco temporal, entre tantas outras frentes. Esta é a hora, segundo Miriam, de decidirmos se seremos parte da destruição ou se abraçaremos a imensidão do nosso privilégio e do nosso futuro. Ainda há tempo, mas não muito tempo para sairmos dessa encruzilhada.

*Podcast gravado em 13/10.

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