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Ed. #28 | Segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023.
 
 

A guerra pela regulação das redes sociais e o jabuti da Globo


Na cobertura política, “jabuti” é um artigo enfiado em alguma lei que não tem nada a ver com o assunto original, mas acaba sendo “infiltrado” ali por algum grupo de interesse. Um Kinder Ovo com surpresa, só que em matéria legal. 

Pois bem. Nas próximas semanas deve ir a votação na Câmara dos Deputados o PL 2630, conhecido como PL das Fake News, que traz justamente um jabuti que pode afetar profundamente o futuro do jornalismo no Brasil e também o combate à desinformação de que tanto falamos nessa newsletter. A história é comprida, mas é essencial e por isso decidi dedicar o texto de hoje a ela. Vamos lá.  

O PL 2630 foi costurado ao longo do ano passado sob a liderança do deputado Orlando Silva (PC do B), o relator, que tem se dedicado nos últimos anos a entender os desafios do admirável novo mundo digital. Foi feito para ser aprovado antes das eleições, ajudando a prevenir um pouco a onda de desinformação que assistimos. Mas, sob protestos dos deputados bolsonaristas, não foi aprovado. O resultado sabemos: sem qualquer legislação a respeito, o combate à desinformação acabou ficando mesmo na mão do TSE, comandado por Alexandre de Moraes, acusado muitas vezes de ter exacerbado seus poderes – mas que, convenhamos, teve que fazer as vezes de goleiro, juiz, atacante e técnico ao mesmo tempo justamente pela falta de regras claras sobre as obrigações das plataformas sobre conteúdo desinformativo. 

Agora, o PL ressurgiu diante da movimentação do Ministério da Justiça de Flávio Dino pela aprovação de uma Medida Provisória (MP) que criasse obrigações para as plataformas retirarem conteúdos que atentem contra o Estado Democrático de Direito. A ideia de regular as plataformas via uma MP e não pelo Congresso Nacional, gerou críticas acertadas dos parlamentares e da sociedade civil. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, respondeu falando grosso e prometeu dar andamento ao antigo PL.  

O projeto de lei estabelece algumas regras, como por exemplo, a obrigatoriedade de mais transparência por parte das plataformas, com relatórios semestrais sobre a moderação de conteúdo e outros dados. Hoje em dia, elas não são nem obrigadas a dizer quantos usuários têm no país, quantas contas foram extintas ou o porquê. Para os serviços de mensageria instantânea (WhatsApp e Telegram), prevê a limitação dos reenvios de mensagens em grupos e ações para frear a disseminação de mensagens em massa. Os provedores de redes sociais devem também identificar todos os conteúdos patrocinados e publicitários de maneira mais clara e padronizada. Hoje em dia cada rede faz de um jeito. 

Há ainda um avanço no sentido de criminalizar a propagação de desinformação, em um artigo engenhoso que ataca a indústria das Fake News mas não o usuário desavisado. Diz que é crime “Promover ou financiar, pessoalmente ou por meio de terceiros, mediante uso de contas automatizadas e outros meios ou expedientes não fornecidos diretamente pelo provedor de aplicações de internet, disseminação em massa de mensagens que contenha fato que sabe inverídico”. A pena vai de 1 a 3 anos. 

O Ministério da Justiça já enviou algumas propostas que devem ampliar as penalidades para conteúdos contrários à Lei dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito e que apoiem terrorismo. O texto final deve contar com essas modificações.  

 

Mas há na lei um jabuti, inserido no ano passado por pressão de atores da grande mídia, cujo resultado será entregar potencialmente bilhões de reais nas mãos de empresas jornalísticas que têm perdido espaço e reputação pela concorrência das redes sociais, pelos novos atores do jornalismo independente, mas também por responsabilidade própria, seja por não terem investido em inovação, seja por terem adotado posturas antiéticas nas suas coberturas recentes, sejamos francas.  
 
   

O Artigo 38 – guardem esse nome, vocês vão ouvir falar muito dele – determina que o conteúdo jornalístico usado pelas plataformas (por exemplo, nos resultados da busca do Google) deve ser pago pelas plataformas. Essa remuneração deve ser diretamente às empresas sob a forma de “direitos do autor”. Ganharão os veículos que existem há mais de um ano e que produzem conteúdo jornalístico original “de forma regular, organizada, profissionalmente”. O objetivo seria a “a valorização do jornalismo profissional nacional, regional, local e independente”.  

Há duas coisas que soam o alarme. Primeiro, esse termo “profissional” me dá arrepios, pois começou a surgir há poucos anos, talvez lá pelos idos de 2018, quando a desinformação passou a ser usada de forma mais industrial nas eleições. Mas é um termo usado pela mídia tradicional (ou velha mídia, como preferirem) para se referir a si mesma, excluindo todo mundo que não faz parte do bom e velho clube da concentração midiática histórica no Brasil. 

Como o termo não significa nada (afinal, lembremos, foi a própria Folha de S Paulo uma das vozes que mais combateu a obrigatoriedade do diploma do jornalismo, o que emprestaria pelo menos algum parâmetro para esse título), ele é frequentemente usado para diferenciar o “nós” do “eles”. Repetidas vezes ouvi executivos e editores de grandes empresas – em geral, homens – responderem em um tom condescendente, quando perguntei o que era afinal o tal “jornalismo profissional”: “não se preocupe, vocês também fazem jornalismo profissional, claro”, o que obviamente me deixa ainda mais perplexa e francamente enfurecida.    

Mas o que é mais problemático na formulação do Artigo 38 talvez tenha a ver com a inspiração da lei. Ela reproduz aqui no Brasil a lei aprovada na Austrália (“the News Media Bargaining Code”), sob pesado lobby de Rupert Murdoch, que obrigou as redes sociais a pagarem diretamente para empresas que produzem jornalismo um montante que chegou a 150 milhões de dólares no primeiro ano. 

Qual o problema disso? Previsivelmente, atores maiores e com uma pletora de advogados se saíram muito melhor. Sites pequenos e considerados “irrelevantes” em número de clicks, mas que são fundamentais para a cultura do país – sites que atendem à população indígena por exemplo – ficaram de fora da festa. Criando uma obrigação de pagamento “de empresa para empresa”, a lei concentrou mais dinheiro na mão de empresas que já são milionárias, liberou negociações a portas fechadas com valores que ninguém sabe quais são, e não garantiu que o dinheiro foi de fato para a produção de notícias e o pagamento dos jornalistas. 

É bem verdade que o texto da lei no Brasil já foi muito melhorado, incluindo por exemplo os adjetivos “local” e “independente” – imagino que uma concessão paternalista para figurar ali do lado do jornalismo “profissional”, aquele feito por gente adulta. Mas também é um segredo de polichinelo que a maior pressão pela aprovação do Artigo 38 vem do Grupo Globo, que trava uma guerra de anos com as redes sociais que roubaram um pedaço enorme da verba publicitária que antes ia para jornais, rádios e TVs, ao criar a publicidade dirigida a cada usuário, quebrando o modelo de negócios tradicional. 

Um pouquinho de background: quando se começou a falar de regulação das plataformas por aqui, o Google, e depois do Facebook, criaram instrumentos de pagamento aos grupos de jornalismo que funcionam mais ou menos como um “ensaio” para tais acordos comerciais. Servem ainda para já estabelecer uma relação direta, mais amigável, diante de uma onda de regulação que é mundial e vem forte. Lembremos, sempre, que o Brasil é o segundo ou terceiro maior mercado para plataformas e o que acontece aqui no Brasil vai impactar, e muito, seu lucro. 

No Google, o programa chama “Google Destaques” e no Facebook, chama “News Innovation Test”. Por uma verba paga anualmente, alguns veículos selecionados produzem alguns conteúdos específicos para serem destacados pelas plataformas como “conteúdo jornalístico de qualidade”. A grande maioria dos beneficiários são do jornalismo tradicional. O nome que falta: a Globo. 

Segundo eu apurei, o Grupo queria um pagamento de valor considerado inaceitável por pelo menos uma das plataformas. Queria, provavelmente, uma equivalência aos valores pagos a empresas na Austrália e em outros países – coisa que aqui no Brasil está longe de acontecer. O acordo não deu em nada, e essa ausência do maior grupo de comunicação do Brasil, à luz do conteúdo do PL 2630, não poderia ser mais eloquente. Ela significa que, com a aprovação do PL, o grupo Globo ganha músculo na negociação – que vai acontecer, não nos enganemos, a portas fechadas. 

Isso é o puro suco do “jabuti”. O que poderia ser uma discussão ampla, envolvendo a sociedade, plataformas, mídias tradicionais e mídias nativas digitais, coletivos, estudiosos, vira um artigo enfiado de última hora para beneficiar um grupo econômico. Poxa, se as redes sociais devem pagar pelo jornalismo – é melhor eu deixar bem claro, elas DEVEM SIM – isso deveria ser a base para uma política que revertesse as distorções históricas da concentração dos meios. O dinheiro poderia, por exemplo, ir para um fundo que seria distribuído de acordo com a necessidade de cada região. Ou a consórcios de meios. Ou de vários outros jeitos que não beneficiassem aqueles que têm a estrutura para brigar a boa briga das negociações capitalistas feitas atrás das cortinas.  

Como o Brasil nunca investiu em um jornalismo público potente – diferentemente do Reino Unido, com sua BBC, por exemplo – nós vivemos um país em que 5 em cada 10 municípios podem ser considerados “desertos de notícias”, onde não tem nem um veículo estabelecido que leve à população informações de interesse público e que monitore os poderosos. Porque bom jornalismo custa caro, como sabemos, leva tempo, exige profissionais qualificados, mas tem muitos locais, simplesmente não é um bom negócio. E, mesmo assim, é essencial que exista.

Em muitos países, em especial na Europa, foram lançadas nos últimos anos políticas públicas para fomentar o jornalismo digital como maneira de combater a desinformação e buscar dinamizar uma indústria que enfrenta ainda enormes dificuldades depois do fim da era dos anúncios. 

Aqui no Brasil, até pela concentração do mercado, esse tipo de discussão sempre foi sufocado: os donos dos meios tradicionais sempre boicotaram a criação de um sistema de informações público de qualidade, e sempre taxaram qualquer iniciativa para regular os meios ou discutir que tipo de mídia o Brasil precisa como “ataques à liberdade de imprensa”.

Com a internet, esse tipo de argumento ficou obsoleto. É urgente pensarmos qual é o jornalismo necessário no país, e que tipo de conteúdo não deve receber incentivos comerciais – e criar  mecanismos que desincentivem, por exemplo, a produção de Fake News e discurso de ódio. 

Venho falando aqui nessa newsletter sobre como hoje em dia criar Fake News e até ser golpista é um excelente modelo de negócios. Como penalizar esse benefício econômico, não só aos produtores mas também às plataformas? Como exigir que elas dêem maior visibilidade ao conteúdo de qualidade, seja de um grande meio ou de um meio menor? 

São essas as questões que deveríamos estar discutindo, coletivamente. Infelizmente, as últimas notícias dão conta de que o PL deve ser votado nas próximas semanas, incluindo aí o jabuti da Globo. Nos resta observar e contar para todo mundo que tiver interesse no assunto.  

Foi o que tentei fazer nesta newsletter. Antes de me despedir, quero fazer um “disclaimer”. A Agência Pública preside a Associação de Jornalismo Digital, uma associação que reúne mais de 100 meios nativos digitais. Eu, como representante da Pública, sou presidente da Ajor. Então tenho acompanhado de perto essa discussão e, embora esse texto seja estritamente pessoal e não reflita a visão da Ajor, a preocupação com uma lei que pode apenas reforçar a concentração do mercado de jornalismo é compartilhada pelos nossos associados. 

Até a semana que vem. 

 



Natalia Viana
Diretora Executiva da Agência Pública
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