Transformando a política: a presença de pessoas trans nas eleições do Rio Grande do Norte
Natal, RN 28 de mar 2024

Transformando a política: a presença de pessoas trans nas eleições do Rio Grande do Norte

20 de setembro de 2022
15min
Transformando a política: a presença de pessoas trans nas eleições do Rio Grande do Norte

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Por Leandro Juvino e Luan Conceição

O debate sobre transexualidade está presente na sociedade há décadas. Ano após ano, a comunidade transexual busca alcançar novos espaços e direitos, e não seria diferente na política. Nas eleições municipais de 2020, o Brasil elegeu 30 vereadores e vereadoras transexuais (22 a mais que nas eleições de 2016), distribuídos em nove estados, incluindo o Rio Grande do Norte, com Thabatta Pimenta (PSB) pelo PROS, em Carnaúbas dos Dantas.

Todos já eleitos ocuparam cargos municipais e estaduais. Nenhum conquistou ainda uma cadeira na Câmara dos Deputados, no Senado Federal ou na Presidência da República. Mas o histórico de luta, resistência e competência de transexuais na política leva a crer que essas conquistas estão mais próximas de serem alcançadas que distantes. Segundo um levantamento do coletivo #VoteLGBT, 58 candidatos e candidatas transexuais (sendo 6 homens e 52 mulheres) concorrerão a cargos nas eleições gerais de 2022.

O sucesso político de Kátia, que quebrou várias barreiras de preconceito ainda naquela época, é muito simbólico. Foto: Divulgação

A presença de pessoas trans na política no Brasil começou no estado do Piauí, em 1992. Naquele ano, Kátia Tapety foi eleita vereadora pelo município de Colônia do Piauí (PI), tendo sido reeleita duas vezes, nos anos de 1996 e 2000. Depois disso, foi vice-prefeita na chapa com Lúcia Moura de Sá, com 62,13% dos votos, em 2004. Passou pelo PFL, PPS e, atualmente, é filiada ao PP.

Depois dela, vários outros candidatos e candidatas transexuais e travestis, conquistaram cargos políticos importantes no país.

A chegada à política

Thabatta Pimenta (PSB) e Rochelly Potiguar (PDT) são duas potiguares transgênero que trabalham para romper as barreiras da transfobia no cenário político. Thabatta se tornou a primeira vereadora trans do Rio Grande do Norte pelo município de Carnaúba dos Dantas, em 2020. Rochelly é advogada, estudante de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte e sonha em ter um cargo eletivo desde criança.

A carnaubense entrou na política com a intenção de lutar pelos direitos de outras pessoas, além dos seus. Irmã de uma pessoa com deficiência, Ryan, viu a necessidade de abraçar essa causa: “Foi através da luta da pessoa com deficiência que eu entrei na política, por ver a realidade que o meu irmão passava diariamente. E para além do que ele vivia, comecei a enxergar que outras famílias não tinham ninguém que falasse por elas”, disse a vereadora.

Thabatta encontrou em seu irmão, Ryan, a necessidade de lutar pelas pessoas com deficiência. Foto: acervo pessoal

Radialista há 12 anos, ela abordava as questões relacionadas a esse assunto no rádio. Passou a também falar sobre a importância de respeitar e inserir corpos LGBTs na sociedade, trazendo empregabilidade para pessoas trans e travestis.

O caminho foi difícil. A radialista conta que sofreu duros ataques em sua primeira candidatura, em 2016. “O que a gente percebe é que muitos partidos políticos querem os nossos corpos, querem a nossa comunidade para ser esteira ou chaveirinho, para dizer que incluem a comunidade LGBT, mas quando chegamos nesses lugares eles não dão suporte às nossas candidaturas, não nos enxergam com o potencial que a gente tem”, desabafou Thabatta, que já passou pelo PSDB e pelo PROS antes de chegar ao PSB.

Já Rochelly, sempre quis entrar na política, sendo esse um dos seus grandes sonhos e metas, tendo sido encorajada pelos seus familiares. Ainda assim, deixou esse desejo de lado para poder cursar a faculdade. Após ter se formado em Direito e iniciado a graduação em Filosofia, passou a atuar como juíza leiga, mas percebeu que naquela função poderia lidar apenas com as demandas que chegavam ao seu gabinete. Foi aí que viu na política a chance de expandir o número de pessoas que o seu trabalho poderia alcançar: “Cheguei à conclusão que na política eu poderia fazer muito mais, poderia ajudar toda população.” disse.

"A política é um lugar hostil para as mulheres", diz Rochelly Potiguar.

Foi pensando nisso, que ela se filiou ao Partido Democrático Trabalhista (PDT), que chamou carinhosamente de Partido das Travestchys, apelido dado pelas icônicas artistas brasileiras Thália Bombinha e Michelly Summer.

A advogada é uma grande admiradora da vereadora Marielle Franco, morta a tiros no Rio de Janeiro, cujo crime ainda não foi solucionado.

“A política é um lugar bem hostil para as mulheres, parece que devemos por natureza ser donas do lar e nunca aquelas que administram a cidade, o estado ou o país”, desabafou a candidata, contando que dos muitos questionamentos que escuta está a pergunta sobre o seu estado civil (e “daí para baixo”).

A estudante conta que desde pequenas, as mulheres são silenciadas, docilizadas e ensinadas a ter medo de falar. E quando realizam tais coisas são definidas como barraqueiras, estéricas e brigonas. Para ela, no fim, as mulheres estão apenas reivindicando os seus direitos na política.

Educação, empregabilidade e conquista de novos espaços

Thabatta concorre ao cargo de deputada federal nas eleições de 2022. Foto: arquivo pessoal

Conquistar espaço no cenário político não é uma tarefa fácil, principalmente para as mulheres. “Há muitas questões de proteção para as mulheres, não só no feminicídio mas também no trans feminicídio. A gente é, além de tudo, agredida de todas as formas. Então deve haver uma rede de apoio a todas nós mulheres como um todo” desabafa Thabatta.

Para a candidata, a comunidade trans e travesti precisa dar foco à importância da empregabilidade. “A gente sabe que vive no país que mais mata pessoas trans e travestis e nem todas têm uma oportunidade de emprego”, disse Thabatta, que reconhece a oportunidade que teve no rádio e, assim, conseguiu “calar a boca” daqueles que precisavam entender que muitas não tinham a chance de mostrar o seu potencial.

"Eu vejo muito por esse lado, que outras meninas trans tenham essa oportunidade, que cada vez mais comecem a ir às escolas; que exista uma campanha de incentivo a essas crianças e adolescentes trans para que aquele ambiente seja um ambiente acolhedor e ao mesmo tempo uma capacitação para esses educadores; que esse espaço, principalmente, da educação e da escola é onde a gente precisa ser mais acolhida” declarou a comunicadora.

Rochelly Potiguar também lamenta a falta de representatividade e faz uma analogia à letra da música O Tempo Não Para, de Cazuza, no verso que diz “tuas ideias não correspondem aos fatos”, para ilustrar que nas propagandas e no imaginário da maioria das pessoas, a mulher está lá, participando ativamente da política, mas o fato é que ainda não está como deveria.

“Tá aqui, a mulher chegou. Tá aqui o T, chegou, sabe? mas cadê a representatividade do T? Cadê o T para fazer campanha política? Não tem, querido, não tem!” desabafou Rochelly, referindo-se à letra T de trans na sigla LGBTQIAP+.

Conflitos com a legenda

Rochelly tem reivindicado mais investimentos em sua candidatura. Na data em que o seu programa eleitoral seria veiculado, o material de um dos candidatos da legenda repetiu, excluindo o da candidata trans. Por essa razão, ela denunciou o PDT ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Rochelly sempre sonhou em entrar para a política.

A advogada também lembra que gostaria de ter falado durante a convenção da Federação Brasil da Esperança, no dia 23 de julho, mas não lhe foi dada a oportunidade. “Vários candidatos falaram, a governadora falou, Garibaldi falou, Zenaide falou. Eu estava lá no palco, na frente, mas a mim não foi dada a oportunidade de fala" lamenta. "Tinha um T lá no palanque, e o palanque não foi dado um microfone para falar pelo menos um boa tarde para o público” reclamou Rochelly.

Até a publicação desta matéria, ela havia recebido 10 mil reais dos 20 mil que foram prometidos para realizar a campanha eleitoral. A estudante questiona: “Cadê a representatividade feminina? De 253 milhões, chegar 10 mil e a promessa de mais 10. Como é que vou contratar pessoas para trabalhar um mês comigo?” desabafou a advogada, dizendo que sente medo de sofrer retaliações por ser uma mulher trans entrando na política e tratando de assuntos importantes para a sociedade.

Ideais e projetos

A importância desse espaço vai além da representatividade, segundo Rochelly e Thabatta, que não querem apenas alcançar o estrelato político. Ambas têm ideais e projetos para oferecer à sua comunidade e ao Brasil.

Elas garantem que, caso eleitas, pretendem apresentar e votar em propostas que contribuam para melhorar a vida das mulheres brasileiras. Rochelly iniciou a criação de um projeto voltado para as mães, em especial, aquelas com filhos pequenos: “Nós, mulheres, sem sombra de dúvidas precisamos ser ouvidas e ter leis próprias para nos auxiliar nesse e em outros pontos de nossas vidas”, comentou.

Thabatta Pimenta também faz questão de lembrar que a luta feminina é de todas as mulheres, sejam trans ou cisgêneros. A candidata frisa a importância da pluralidade feminina e destacou o papel das mulheres interioranas, como ela, além das mulheres com deficiência.

Ambas não deixam de defender o cuidado com a comunidade trans e travesti. Para Rochelly, eleger pessoas trans, é lhes dar a oportunidade de fazer um trabalho verdadeiro e direto por essa comunidade: “Eu sou a bola da vez, sou a personagem principal dessa história, sou aquela que sofreu transfobia na pele”, desabafou Rochelly. E é pensando no que passou como mulher trans, que garante trabalhar para proteger outros membros da comunidade: “Assim, não há dúvidas de que farei por mulheres e homens transexuais e LGBTQIAPN+ que sofrem transfobia na pele e principalmente pelo Estado. [...] Pois ser deputada federal é ser uma servidora pública, (que pode) reverter esta infeliz realidade, começando com a conscientização como candidata e com legislação, caso eleita”.

Votar com o nome social é direito de todo cidadão brasileiro

O nome social é o modo pelo qual pessoas transexuais e travestis desejam e devem ser chamadas, de acordo com sua identidade de gênero e como se identificam socialmente. Geralmente, os nomes são diferentes dos escolhidos pelos seus responsáveis, na hora de realizar o registro civil no cartório.

Trata-se de um direito assegurado em todo o território nacional. No decreto de N° 8727, publicado pela Secretaria Geral da presidência da República durante o Governo Dilma, ficou estabelecido que nome social é a “designação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida”, e afirma que os órgãos e entidades da administração pública são obrigados a adotar a denominação, quando requerido. Portanto, as entidades federais passaram a se atualizar de acordo com esta norma ainda naquele ano, como foi o caso do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Em 2018, na mesma eleição que elegeu o presidente Bolsonaro, o Tribunal Superior Eleitoral permitiu, através da Portaria Conjunta n° 1/2018, que os cidadãos votassem utilizando o nome social. Naquele ano, 7.945 eleitoras e eleitores brasileiros, utilizaram o nome com o qual se identificam. Com mais pessoas conhecendo esse direito, o número cresceu em 2022. Segundo o TSE, mais que triplicou e atingiu a marca de 29.701 eleitores, um crescimento de 373,83% em apenas 4 anos. No Rio Grande do Norte, são 699 eleitores aptos a votar com o nome social, 516 a mais que nas eleições de 2018. Os números mostram que, apesar de viverem um governo que é assumidamente contrário aos direitos das pessoas trans, essas pessoas não só resistem, como também buscam seus direitos, que levaram tanto tempo para ser conquistados.

O direito ao voto com o nome social vai além de uma maneira de evitar situações constrangedoras envolvendo pessoas transexuais, que seriam obrigadas a comparecer às eleições utilizando um nome com o qual não se identificam. Esse direito também simboliza que as instituições máximas do país passaram a reconhecer pessoas trans da maneira como querem e devem ser reconhecidas. Quando eleitores e eleitoras votam utilizando o nome social, estão finalmente registrando o seu voto, não mais o voto daqueles que a sociedade designou que fossem.

Para Kaique de Lima, 20, estudante do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN) e militante do Coletivo Juntos, votar com o nome social é uma conquista de extrema importância. O jovem é natural de Natal e, em 2022, vai votar pela primeira vez com o nome social. Para sua alegria, Kaique revela que não teve dificuldades na mudança, que fez pela internet.

Quem deseja incluir o nome social no título de eleitor, deve preencher o requerimento no sistema Título Net, mesmo aqueles com menos de 18 anos.

Votar com o nome que se identifica protege Kaique e outros brasileiros de constrangimentos na hora de votar. Foto: Camila Mai

Apesar do crescimento do número de políticos, candidatos e eleitores, a falta de representatividade ainda preocupa o jovem. Ele conta que, apesar de ver mais pessoas LGBTQIAP+ no cenário político, ainda se sente pouco representado nas candidaturas atuais. “Ainda é muito pouco. Infelizmente, nossa política ainda é dominada por homens brancos e cis” desabafa o estudante.

Na hora de votar, Kaique conta que é importante escolher candidatos que o represente politicamente e preservem seus direitos na sociedade, como segurança, saúde, educação e lazer, de acordo com o que garante a Constituição de 1988. “A política está cheia de gente tentando tirar os poucos direitos que temos. Então, é muito importante votar em quem está disposto a não deixar isso acontecer”, acrescenta.

Um olhar para o futuro

Muito se falou sobre espaço durante as entrevistas com ambas as candidatas e com o eleitor. Todos concordam que houve um tempo em que pessoas trans e outras minorias eram deliberadamente caladas pela sociedade e pelo Estado. Apesar de muitas tentativas de silenciamento e de manter um ambiente que continue a hostilizar corpos trans e travestis, nomes como o de Thabatta, Rochelly e Kaique, mostram que o contexto pode ser transformado.

*Esta reportagem é fruto do projeto “Educação e jornalismo: ocupando o vazio de notícias do RN”, financiado pela Meta através do programa International Center for Journalists (ICFJ).

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