Observatório Constitucional

Democracia para valer tem mulheres no poder

Autores

  • Christine Peter da Silva

    é doutora em Direito Estado e Constituição pela Universidade de Brasília professora titular de Direito Constitucional do UniCeub-DF e secretária-geral do Tribunal Superior Eleitoral.

  • Carolina Gomide Araújo

    é mestranda em Direito pela Universidade de São Paulo bacharela em Direito pelo Uniceub-DF e pesquisadora do Núcleo de Estudos Constitucionais (NEC/Uniceub-DF).

18 de junho de 2022, 8h03

A ideia de uma democracia paritária no Brasil é urgente e exige comprometimento de todas e todos. Por isso, uma vez mais o tema que escolho para compartilhar com as leitoras e leitores dessa prestigiosa coluna envolve um capítulo importante do constitucionalismo feminista: a participação política das mulheres, ocupando cargos de poder, na construção do Estado Democrático de Direito brasileiro.

Embora ainda estejamos distantes de uma democracia paritária, especialmente no que diz respeito à participação de mulheres nos cargos políticos do parlamento federal brasileiro, é preciso reconhecer que o poder das mulheres tem assinatura de nossas antepassadas. Especialmente nos processos constituintes plurais, abertos e democráticos de 1933/34 e 1987/88 é possível identificar a potência da presença da inteligência feminina nos textos constitucionais respectivos.

O objetivo principal aqui, portanto, é trazer à reflexão a contribuição de mulheres que, não obstante todas as dificuldades do passado e do presente, ao exercerem estrategicamente seus mandatos políticos, tornaram a democracia brasileira, pelo menos potencialmente, aberta à paridade de gênero, contribuindo, assim, para uma sociedade mais justa e igualitária.

Também é objetivo, ainda que decorrente, chamar a atenção de eleitoras e eleitores brasileiros para o fato de que a eleição de mulheres para o parlamento federal, neste ano de eleições gerais no Brasil, tem valor estimulado prospectivo, para fins de distribuição de recursos dos fundos partidário e de campanhas eleitorais, tal como previsto no artigo 2º da Emenda Constitucional 111/2021.

A Assembleia Nacional Constituinte de 1934 foi fruto de revoluções. Indiretamente, foi consequência do movimento revolucionário que depôs o então presidente Washington Luís em 24 de outubro de 1930, simbolicamente, foi a Revolução Constitucionalista em São Paulo, no ano de 1932, que iniciou o processo de reconstitucionalização do país [1].

Fazendo um recorte de gênero, o processo que originou a Constituição de 1934 foi especialmente importante para as mulheres por dois motivos: foi a primeira vez que puderam votar para os seus representantes e foi a primeira vez em que uma mulher foi eleita para ocupar uma cadeira no Parlamento. Tais conquistas foram frutos de anos de lutas femininas, especialmente pela Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, encabeçada por Bertha Lutz.

Para contribuir com os debates que estavam sendo realizados, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino apresentou em texto em formato de artigos e justificativas entitulado "13 princípios básicos – sugestões ao ante-projecto da Constituição" sendo eles: racionalização do poder, organização da economia, dignificação do trabalho, nacionalização da saúde, generalização da previdência, socialização da instrução, democratização da justiça, equiparação dos sexos, consagração da liberdade, proscrição da violação, soerguimento da moral, flexibilidade do direito e dinamização da lei [2].

Nessa eleição, Carlota Pereira de Queirós, única mulher no parlamento, obteve a terceira maior votação do estado de São Paulo, com mais de 170 mil votos, tornando-se a primeira mulher eleita para Câmara dos Deputados [3]. Como suplentes, foram eleitas Edith Dinoha da Costa Braga; pelo estado do Ceará, Edith Mendes da Gama Abreu, no estado da Bahia, e pelo Rio de Janeiro Bertha Maria Julia Lutz e Lydia de Oliveira. Entre os deputados classistas não houve eleição de representante feminina, registra-se que Almerinda Farias Gama foi a única eleitora delegada, com apoio da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino [4].

O primeiro discurso da deputada Carlota Pereira de Queiroz, durante a Assembléia Nacional Constituinte, foi em 13 de março de 1934, em momento conhecido como "explicação pessoal", previsto no regimento interno da Casa. Segue trecho do discurso evidenciado pela professora Eneida Dultra, no qual a deputada justifica o silêncio que até então mantinha dentro da Casa:

"Foi o zelo pela missão que me foi confiada que me obrigou a esta attitude de reserva. Receiosa de comprometer desde o inicio a representação feminina, da qual tanto esperam, com justa razão, as minhas patricias, pelo brilho que lhe poderão emprestar um dia, procurei abriga-la de possíveis criticas. E, para isso, confesso que não poucas vezes tive de vencer as tendencias espontaneas e impulsivas de um temperamento feminino, que poderia me reduzir ao ridículo. Mas, um dever me obrigava para com aquelles que, reconhecendo os direitos politicos da mulher no nosso paiz, deram-lhe tambem a opportunida de falar em nome do povo. E, dominando as primeiras hesitações da estréa, subo hoje a esta tribuna, para vencer mais uma etapa da nossa evolução política e iniciar definitivamente a vida activa da mulher parlamentar no Brasil" [5].

Em síntese, é possível afirmar que a Constituinte de 1933/1934 foi responsável por importante transação social, afinal, pela primeira vez na história uma mulher ascendeu ao parlamento, maior posto legislativo da Nação. No entanto, diante da dimensão do que se objetivava alcançar, as conquistas foram atenuadas em razão dos silenciamentos institucionalizados observados na participação e nas falas durante a Assembleia.

Entre 1934 e 1988 foram mais de cinco décadas, mas a presença feminina em uma Assembleia Constituinte brasileira mais uma vez rendeu frutos importantes para o Estado Democrático de Direito brasileiro. Com slogans como "Constituinte para valer tem que ter palavra de mulher", "Constituinte para valer tem que ter direitos da mulher" e "Constituinte sem mulher fica pela metade", a Constituinte de 1987/88 foi terreno fértil para um movimento criado como uma resposta à sub-representatividade feminina no Poder Legislativo.

Para elaborarem manifesto sobre os direitos fundamentais das mulheres a serem incluídos na nova Carta, o Conselho dos Direitos das Mulheres solicitou às mulheres brasileiras de todos os cantos do país que enviassem, durante 20 meses, propostas e opiniões. Jacqueline Pitanguy, então presidente do órgão, conta que "Numa época sem internet, recebemos milhares de cartas e telegramas" [6].

Dessa mobilização, resultou a chamada "Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes", que viria a ser entregue ao presidente da Assembleia Nacional Constituinte, o deputado Ulysses Guimarães, em março de 1987. Entre a criação do Sistema Único de Saúde, ensino público e gratuito em todos os níveis e a reforma agrária, o documento continha demandas em relação aos direitos das mulheres no que se referia à família, trabalho, saúde, educação e cultura, violência e questões nacionais e internacionais [7].

Sobre esta data histórica de entrega da Carta ao presidente da ANC, deputado Ulisses Guimarães, em 27 de março de 1987, Salete Silva traz trecho do Jornal Brasil que descreve um pouco do movimento no parlamento. Transcreve-se:

"Lideradas por uma feminista de 81 anos, Carmem Portinho, 800 ruidosas e animadas mulheres ocuparam ontem a Câmara para fazer a entrega oficial de suas reivindicações ao presidente Ulisses Guimarães. Convocadas pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, procedentes de todas as partes do país, elas chegaram à Câmara às 16h, empunhando cartazes e cantando. Só às 18h, depois de terem tomado a mesa, o plenário e as galerias, cantando o Hino Nacional a plenos pulmões, de mãos dadas, elas se retiraram. Logo que chegaram à Câmara, houve um impasse: as mulheres concentradas no Salão Nobre queriam a todo custo invadir o plenário. Os ânimos se acalmaram com a chegada de Ulysses. Houve uma enorme confusão quando todos quiseram testemunhar a entrega da Carta das Mulheres à Constituinte. Apesar do tumulto, o documento foi entregue e as deputadas, lideradas por Benedita da Silva (PT-RJ), conduziram as mulheres às galerias e os parlamentares, ao plenário. Uma outra confusão formou-se quando os agentes de segurança chamaram as mulheres para guardar seus pertences. As prateleiras foram pequenas para bolsas, panfletos e cartazes. O presidente da sessão, Arnaldo Farias de Sá (PTBSP), convidou as constituintes a integrarem a mesa, passando a presidência para a deputada mais experiente, Cristina Tavares (PMDB-PE). As mulheres aplaudiram com entusiasmo as parlamentares. Uma das mais aplaudidas foi Benedita da Silva, quando disse: 'Estamos reclamando o direito à cidadania. Somos legítimas representantes daquelas que, em silêncio, possibilitaram que os senhores (dirigindo-se aos deputados) esteja sentados aí.' Também a deputada Beth Azize (PSB-AM) foi aplaudida quando disse que 'mais da metade da Constituinte deveria ser composta por mulheres, que representam mais de 50% do eleitorado brasileiro'. Anna Maria Rattes (PMDB-RJ) ressaltou: 'é a primeira vez que as mulheres são maioria neste plenário e na mesa. A nossa luta não é só das mulheres, mas do povo brasileiro que busca igualdade social'" [8].

Essa carta teve como responsáveis pela redação final as feministas: Jaqueline Pitanguy, Floriza Verucci, Branca Moreira Alves, Leila Linhares, Sílvia Pimentel, Comba Marques Porto, Nair Guedes e Ana Montenegro [9].

Cumpre registrar que, apesar de meio século de diferença, comparando historicamente, muitas são as semelhanças entre a Carta das Mulheres ao Constituinte de 1988 e a Carta de 13 princípios entregue aos Constituintes de 1933 pelas mulheres da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino.

Se o "Lobby do Batom" foi uma forma simbólica de as mulheres se identificarem. Dentro da Câmara dos Deputados, a pauta das mulheres foi defendida oficialmente pela chamada bancada feminina. Em processo caracterizado pela ousadia, os constituintes de 1988 optaram por um organograma pelo qual o projeto iria sendo construído, em etapas e por capítulos, para, após reunidos em uma comissão de sistematização, irem ao Plenário.

Apesar de terem sido eleitas 26 deputadas, durante praticamente toda a Constituinte a bancada feminina foi composta por 25 parlamentares, visto que Bete Mendes licenciou-se para assumir o cargo de Secretária de Cultura do Estado de São Paulo. As 26 representantes daquela que ficou logo conhecida como a "bancada feminina" eram: Abigail Feitosa; Anna Maria Rattes; Benedita Da Silva; Bete Mendes; Beth Azize; Cristina Tavares; Dirce Tutu Quadros; Eunice Michiles; Irma Passoni; Lídice Da Mata; Lúcia Braga; Lúcia Vânia; Márcia Kubitschek; Maria De Lourdes Abadia; Maria Lúcia; Marluce Pinto; Moema São Thiago; Myriam Portella; Raquel Cândido; Raquel Capiberibe; Rita Camata; Rita Furtado; Rose De Freitas; Sadie Hauache; Sandra Cavalcanti ; Wilma Maia [10].

Ao realizarem um balanço, após a promulgação da Constituição, as mulheres membros do lobby do batom concluíram que 80% de suas reivindicações foram convertidas em direitos constitucionais [11]. Apesar das grandes vitórias femininas, algumas reivindicações do movimento feminista não entraram no texto constitucional originário de 1988, como a não aprovação da aposentadoria das donas de casa; o não reconhecimento de plenos direitos para as empregadas domésticas e a legalização do aborto.

É por isso que se torna importante continuarmos a luta pela presença de mulheres no poder, especialmente nos cargos legislativos. Nesse sentido, como forma de incentivar a democracia paritária, o constituinte derivado, por meio da Emenda Constitucional 111/2021, previu norma constitucional com o seguinte teor:

"Art. 2º — Para fins de distribuição entre os partidos políticos dos recursos do fundo partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), os votos dados a candidatas mulheres ou a candidatos negros para a Câmara dos Deputados nas eleições realizadas de 2022 a 2030 serão contados em dobro.

Parágrafo único. A contagem em dobro de votos a que se refere o caput somente se aplica uma única vez."

Mas de nada adiantará as normas constitucionais ou infraconstitucionais que estimulam a participação de mulheres na política se nós, mulheres e homens brasileiros, não refletirmos sobre qual o papel das mulheres nos cargos políticos. Já somos mais da metade do eleitorado, ou seja, já temos condições de dar concretude à democracia paritária no Brasil. Se isso ainda está distante, talvez seja mais um sintoma da falta de consciência democrática em nosso país, pois democracia para valer tem que ter mulheres no poder.

 


[1] CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL (CPDOC). Assembléia Nacional Constituinte de 1934. Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/assembleia-nacional-constituinte-de-1934. Acesso em: 12/5/2021.

[2] DULTRA, Eneida Vinhaes Bello. Direitos das mulheres na Constituinte de 1933-1934: disputas, ambiguidades e omissões. 2018. 254 f. Tese (Doutorado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2018.

[3] MARQUES, Teresa Cristina De Novaes. Voto Feminino no Brasil. Brasília, 2019.

[4] DULTRA, Eneida Vinhaes Bello. Direitos das mulheres na Constituinte de 1933-1934: disputas, ambiguidades e omissões. 2018. 254 f. Tese (Doutorado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2018.

[5] DULTRA, Eneida Vinhaes Bello. Direitos das mulheres na Constituinte de 1933-1934: disputas, ambiguidades e omissões. 2018. 254 f. Tese (Doutorado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2018.

[6] SILVA, Christine Oliveira Peter da; ARAUJO, Carolina Freitas Gomide. Constitucionalistas Constituintes: uma agenda para o Brasil. In: Christine Peter da Silva; Estefânia Maria de Queiroz Barboza; Melina Girardi Fachin. (Org.). Constitucionalismo Feminista: Expressão das políticas públicas voltadas à igualdade de gênero. 1ª ed. Salvador (BA): Editora JusPodium, 2020, v. 1, p. 17-55.

[7] SILVA, Christine Oliveira Peter da; ARAUJO, Carolina Freitas Gomide. Constitucionalistas Constituintes: uma agenda para o Brasil. In: Christine Peter da Silva; Estefânia Maria de Queiroz Barboza; Melina Girardi Fachin. (Org.). Constitucionalismo Feminista: Expressão das políticas públicas voltadas à igualdade de gênero. 1ª ed. Salvador (BA): Editora JusPodium, 2020, v. 1, p. 17-55.

[8] SILVA, Salete Maria da. A carta que elas escreveram: a participação das mulheres no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988. Salvador. 2011. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/7298/1/TESE%20vers%c3%a3o%20para%20PDF%20.pdf. Acesso em: 29/6/2020

[9] SILVA, Salete Maria da. A carta que elas escreveram: a participação das mulheres no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988. Salvador. 2011. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/7298/1/TESE%20vers%c3%a3o%20para%20PDF%20.pdf. Acesso em: 29/6/2020

[11] SILVA, Christine Oliveira Peter da; ARAUJO, Carolina Freitas Gomide. Constitucionalistas Constituintes: uma agenda para o Brasil. In: Christine Peter da Silva; Estefânia Maria de Queiroz Barboza; Melina Girardi Fachin. (Org.). Constitucionalismo Feminista: Expressão das políticas públicas voltadas à igualdade de gênero. 1ª ed. Salvador (BA): Editora JusPodium, 2020, v. 1, p. 17-55.

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