O que está acontecendo com as startups brasileiras?

Homem branco, de camiseta branca e calça preta, sentado em um sofá laranja, com a mão esquerda na cabeça, como que frustrado, em frente a um notebook prata, da Apple, cheio de adesivos de tecnologia. Ao fundo, outros sofás iguais separados por paredes finas.

Após anos de bonança, com rodadas de investimento e “valuations” nas alturas, em 2022 o mercado global de tecnologia tropeçou e está cambaleante. São frequentes as notícias de demissões em massa, motivadas por novas políticas de contenção de custos que, por sua vez, derivam de um cenário macroeconômico mais tenso, com inflação e juros altos e muita apreensão. Eu ouvi “crise”?

Os sinais vêm de dentro, às vezes de maneira explícita. Chamou a atenção, nos últimos meses, as cartas abertas e comunicados de empresas de capital de risco (“venture capital”, ou VC), como Y Combinator, SoftBank e Sequoia, pedindo às suas startups investidas para que segurem a onda — em resumo, queimem menos caixa e tentem aumentar a receita. Tempos bicudos se avizinham.

No Brasil, João Kepler, co-fundador e CEO da Bossanova, também publicou uma carta aberta, mas num tom diferente, uma tentativa de acalmar os ânimos.

O Manual do Usuário conversou com quatro profissionais da área de investimentos — incluindo alguém da Bossanova — para entender esse momento do investimento de risco no Brasil, especificamente. Embora tenha ouvido uma resposta mais ou menos dissonante, o consenso da maioria é de que, sim, o cenário mudou muito, mas não a ponto de se falar em crise.

“Acho que é muito mais um freio de arrumação do que uma crise”, disse Antônio Patrus, diretor da Bossanova. Para ele, “crise é [um termo] muito pejorativo” e não é o que estamos vivendo hoje.

“Um ciclo de baixa”, definiu Eduardo Vieira, head de comunicação do SoftBank para a América Latina.

“É uma crise muito mais do mercado de capitais do que dos negócios das startups em si”, ponderou Gabriel Sidi Vieira, sócio da DOMO Invest.

Mulher branca, de cabelo liso escuro comprido, vestindo uma camisa branca de botões, sorrindo. Ao fundo, um escritório. À direita, um painel com o logo da Kria.
Camila Nasser, da Kria. Foto: Divulgação.

Para Camila Nasser, fundadora e CEO da Kria, uma plataforma de equity crowdfunding [investimento coletivo], “é difícil avaliar se é ou não é uma crise, ou uma correção, ou uma recessão quando se está passando por isso, [mas] na minha visão, a gente está passando por uma grande crise”.

E embora os contratempos não façam distinção geográfica, com startups do mundo inteiro se deparando com uma nova realidade em que o acesso a crédito está mais caro e, portanto, difícil, o Brasil tem lá suas peculiaridades.

“A gente é brasileiro, né?”, brinca Gabriel. “Americano nunca passa por crise, aí quando passa, fica assustado. Aqui [no Brasil] a brincadeira é que todo ano tem crise, tirando alguns anos que não têm. Lá fora, todo ano não tem crise, tirando alguns anos que têm.”

Crise = oportunidade?

Na visão dos quatro, para além da crise (exista uma ou não), o momento é de realinhamento. E as startups mais bem preparadas deverão atravessá-lo sem muitos danos, apesar do clima pesado.

Para Gabriel, da DOMO, nem mesmo as demissões em massa que se tornaram rotina em 2022 são, necessariamente, um problema (às empresas, no caso) quando se olha em perspectiva, considerando o mercado como um todo.

“Na história do ventura capital brasileiro, quantas startups levantaram mais de US$ 10 milhões? Umas 500 empresas”, contextualiza. “Quando você vê no Layoffs Brasil 10, 15, 30 empresas fazendo ‘layoffs’ [demissões em massa] de 50 pessoas… isso não é layoff. Você não está desligando grandes partes de operações. Você está readequando tudo. Acho que é natural, é até bom e saudável — isso que é o mais importante — esse ajuste, esse freio de arrumação.”

Homem branco, de cabelo preto curto e barba por fazer, com camisa clara, sorrindo. Ao fundo, parede branca com faixas diagonais escuras.
Gabriel Sidi Vieira, da DOMO Invest. Foto: Divulgação.

Fora essas turbulências que assustam e geram apreensão fora e dentro das empresas, a visão de quem coloca dinheiro dentro delas é a daquela velha máxima de que crise é sinônimo de oportunidade.

“É uma oportunidade de baixar um pouco a poeira de todas as startups, de todos os VCs entenderem as necessidades dos mercados, que é cíclico”, diz Patrus. “É um momento de arrumação da casa, das startups e os VCs se prepararem para dar retorno mesmo, racionalizar um pouco.”

Nessa analogia, a reviravolta no mercado é como uma visita inesperada, que pega os anfitriões de surpresa. Quem estava com a casa bagunçada vai passar aperto.

Gabriel recorre a outra para se fazer entender: a da maré cheia, maré baixa. “Alguns empreendedores estavam construindo negócios baseados na maré cheia. E aí quando esvazia, baixa, vai ver que o cara estava nadando pelado.” (Em outro momento da entrevista, porém, ele retoma a da arrumação doméstica.)

Camila Nasser, da Kria, diverge dos seus pares e fala que há uma crise, sim, se consideramos que “todas as premissas que antes funcionavam muito bem, em uma espécie de — não vou dizer surto coletivo, né? —, mas com fundamentos, elas passam a parar de funcionar do dia para a noite”.

Ela faz a ressalva de que é difícil fazer avaliações do tipo no olho do furacão, e que só o tempo permitirá definirmos com precisão o que estamos vivendo agora.

Para a CEO da Kria, o momento difícil pode ser útil para trazer racionalidade a um segmento que andava inebriado em capital barato, o que gerava distorções na tomada de decisões.

“Tinha tanta oportunidade que você não tinha tempo para pensar”, explica. E isso valia para os dois lados do balcão, ou seja, para investidores, que não faziam o dever de casa e investiam em qualquer “hype” para não perder oportunidades, e empreendedores, que não se questionavam se o dinheiro barato, oferecido aos montes, era realmente necessário à operação.

Quem escapa da crise

Um aspecto relevante nesse debate é o perfil e os estágios de investimento em que estão as startups e atuam as firmas de VC. Para as que investem em estágios iniciais (pré-seed e seed), casos da Bossanova e DOMO, a tempestade no mercado de capitais passa ao largo.

Os números confirmam a tese. Levantamento recente do Distrito mostrou que entre janeiro e junho de 2022, as startups brasileiras captaram US$ 2,92 bilhões em 327 negócios. Em valores, foi 44% a menos. Em quantidade, 21%.

Entre as startups novatas, porém, o saldo foi positivo. As captações seed e pré-seed chegaram a US$ 282 milhões no período, alta de 86% em relação a 2021. Os negócios em estágio inicial (séries A e B) tiveram aumento em valores de 14%, para US$ 1,389 bilhão.

O estrago no primeiro semestre foi causado pelos investimentos em fases avançadas (série C em diante), cujo valor levantado despencou 68%. Por lidarem com valores nominais mais altos, o desempenho ruim arrastou os números gerais para baixo. (Todos esses dados vieram do Startups.com.br.)

Homem branco, de cabelo escuro e curto, sorrindo, vestindo camiseta preta com a inscrição, em branco, “bossanova”.
Antônio Patrus, da Bossanova. Foto: Divulgação.
“Esses pequenos negócios vão continuar surgindo aos milhares, todos os meses, no Brasil e no mundo”, explica Patrus. “Para nós, Bossanova, acho que o efeito desse movimento macro chega muito mitigado, porque novos negócios vão continuar surgindo, se valorizando, e os nossos ‘sweet spots’ [pontos ideais] de entrada e de saída são muito anteriores a esses movimentos mais macro. De fato, a gente não sentiu.”

“Onde a gente opera [pre-seed e seed], focamos muito em demonstração de ‘unit economics’ [métricas/indicadores do negócio], diferente do que é lá fora”, diz Gabriel, que usa como contra-exemplos de “lá fora” o Waze e o WhatsApp, duas startups de crescimento rápido, mas sem geração de receita, e que deram certo, ou seja, foram vendidas para grandes empresas (Google e Meta) por valores altíssimos.

“Aqui no Brasil não tem espaço para não ter receita [como o Waze e o WhatsApp]”, prossegue. A orientação da DOMO às suas investidas é aproveitar o momento para arrumar a casa e trabalhar com prazos mais dilatados: “Diminui um pouco os seus projetos futuros ou seu ‘pace’ [ritmo] de crescimento, porque o seu próximo round [rodada de investimento] que estava previsto para seis meses, será nos próximos doze.”

O SoftBank se destaca no ecossistema pelos altos investimentos que faz em estágios mais avançados das startups — mesmo que às vezes tenha resultados desastrosos, caso emblemático: WeWork.

Eduardo Vieira, do braço latino-americano do SoftBank, concorda que o cenário atual é mais tranquilo para quem investe antes, no começo: “Nesse momento, creio que as rodadas de investimento em ‘early stage’ [estágio inicial] serão privilegiadas. As empresas em estágio de ‘growth’ [crescimento] já receberam um recorde de investimentos na região nos últimos dois anos. Agora devem se focar nas entregas e no desenvolvimento de seus negócios de maneira sustentável.”

Apesar disso, o foco na América Latina, que entrou no radar do japonês SoftBank há dois anos, se mantém, porque ainda existem muitas boas oportunidades aqui, de acordo com Eduardo. “Não é mais uma crise que vai atrapalhar isso”, diz.

Para Patrus, algumas startups têm aproveitado o clima geral para fazer ajustes que talvez não precisassem ou que seriam mal vistos pelo mercado ano passado, mas que podem ser bons para (olha a palavra de novo…) racionalizar a operação.

“Talvez tenha startups que seguraram essas demissões para não demonstrar nenhum tipo de crise. Tem quem realmente precisava, tem quem se aproveitou do momento para dar uma racionalizada nas operações e tem quem se aproveitou do momento para acompanhar o movimento e não receber críticas do mercado.”

A quem acompanha o noticiário de negócios, o tom das falas pode surpreender. Todos parecem muito calmos, tranquilos no meio da turbulência. “Aqui na Bossanova, estamos muito calmos e com uma visão otimista do futuro próximo”, afirma Patrus. “Acho que muito barulho aconteceu, tivemos um momento — final de abril, início de maio — em que todo mundo ficou desesperado com a nova realidade que se colocava diante de nós, mas agora todo mundo está entendendo que existe um limite, que estamos chegando no topo do que era inesperado. Acho que não tem [mais] grandes surpresas.”

“Olho na bola, não na torcida”, aconselha Eduardo, do SoftBank. “O jogo está rolando, é longo, e está longe do fim.”

Gabriel, da DOMO, diz não gostar de alarmismo, sentimento que sente ter se impregnado no noticiário de negócios nos últimos meses, e que, se puder deixar uma mensagem, é a de que “o ‘macro-trend’ [a tendência macro] é muito positivo”. “Se você estava ajustado, ‘unit economics’ direitinho, sem fazer extravagâncias, não tem o que mudar.”

Frente às muitas externalidades que têm chacoalhado os mercados — guerra da Ucrânia, inflação em alta, elevação dos juros —, Camila, da Kria, relembra a essência de uma startup: “Todo grande evento molda novas necessidades. E as startups geralmente são negócios que nascem de necessidades latentes, com essa visão de mudar as coisas, de revolucionar.”

Para ela, a crise (ela chama de crise) pode reconfigurar o mercado de capital de risco. “Hoje, o que acontece no mercado de VC é que quem surge de novo tenta replicar o modelo que os antigos já fazem. Temos pouca inovação no formato de investimento em si.”

Originalmente, esta reportagem seria publicada em conjunto pelo Manual do Usuário e LABS News, braço editorial do Ebanx, uma fintech de Curitiba (PR), e parceiro nosso desde 2019. Em 21 de junho, com a apuração em andamento, o Ebanx encerrou abruptamente o LABS News e demitiu a jornalista responsável pelo projeto junto a outros 339 funcionários, ou 20% da sua força de trabalho.

Foto do topo: Tim Gouw/Unsplash.

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7 comentários

  1. Esse senhor Gabriel precisa de um reality check urgente. Tratando o sustento de famílias como brincadeira, que “tudo bem” demitir do dia para a noite 50 pessoas, afinal, não é layoff, é reestruturação, né? Faça-me o favor e olhe para fora da janela do seu carro importado, o mundo não gira em torno do seu umbigo privilegiado. E não, crise não é assunto para dar risada quando a subsistência de muita gente está em risco.

  2. TLDR: CEOs brancos e ricos dizem que está tudo bem, é só um realinhamento de prioridades. Brasileiro médio segue na subexistencia.

  3. Naaa.. crise? O que é isso? Só uma marolinha.
    2 anos depois…
    Recorde de fechamento de startups que não geravam receita ou diziam ter uma ideia inovadora, só que não.

  4. Agora seria bom ter uma matéria sobre as pessoas que trabalharam nessas startups que estão “realinhado” seus negócios, assim entender como que quem realmente faz algo acontecer vem percebendo essa crise.