Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Uma língua à portuguesa nas Caraíbas?

Há uma língua muito parecida com o português perdida nas Caraíbas. E não é que os espanhóis andam de olho nela?

Porque é que a galiña atravessa o oceano?

O meu primo Rui Pedro esteve uns tempos em serviço nas Caraíbas — sim, há quem viaje até àquelas paragens para trabalhar.

Visitou várias ilhas, entre elas Curaçau, parte do Reino dos Países Baixos.

Uma pessoa aterra numa ilha daquelas e pensa encontrar muita coisa escrita em holandês, pois então. Talvez também em inglês ou, quem sabe, francês…

Ora, o que o meu primo não esperava era chegar a um restaurante e ver anunciado um prato de… «galiña»! Repare o leitor: o «ñ» poderá confundir-nos, mas é «galiña», não é «pollo»… E há mais…

Na primeira frase de fundo branco, aparece um estranho «porfabor». Sim, por favor, tenha o recibo «na man»!

Como o meu primo conhece as minhas inclinações linguísticas, tirou fotos às estranhas palavras caribenhas e mandou-me para eu ver.

Fiquei curioso e fui investigar. Descobri que estava perante o papiamento, que é língua oficial em Curaçau (em conjunto com o holandês e o inglês).

Aquelas palavras são, indubitavelmente, familiares. Um website do governo da ilha afirma isto: «Gobièrnu ke stimulá nos tur pa yuda otro kuida e sentido nashonalista i di patriotismo pa ku nos bandera ku ta un símbolo sagrado di nos Pais.» Não se percebe tudo, mas ficamos a saber que aquele governo quer estimular o patriotismo — e a bandeira é um símbolo sagrado.

Galegos nas Caraíbas?

O papiamento escreve-se com duas ortografias… Em Curaçao, usa-se uma ortografia de base fonética. Já noutras ilhas (como Aruba), usa-se uma ortografia mais etimológica e próxima da ortografia espanhola. O meu primo brincou: com tanta palavra portuguesa escrita à espanhola, até parece que as ilhas foram colonizadas por galegos…

Bem, galego não é. O papiamento é um crioulo, uma língua criada através do contacto de duas ou mais línguas. Há crioulos em muitos lugares do mundo — e que ninguém insinue que estas são línguas menores ou menos genuínas. A designação «crioulo» descreve apenas o modo de criação da língua. Há até quem diga que o inglês é um crioulo nascido do contacto entre a língua dos anglo-saxões e a dos viquingues (e, mais tarde, dos normandos). Mas não importa: muitas línguas nascem assim e este modo de formação não tem nada de redutor. O papiamento é uma língua tão completa e genuína para os seus falantes como o português o é para nós.

Mas donde vem esta língua?

Como acontece em muitos outros casos, não se sabe muito bem qual é a origem concreta deste crioulo em particular. Quando alguém começou a escrever em papiamento, já as gerações que o tinham criado tinham desaparecido muitos séculos antes.

É relativamente óbvio que a origem de grande parte do vocabulário é ibérica — mas não há certezas para além dessa. Há indícios de que a base é portuguesa, com influências espanholas e de outras línguas (incluindo o holandês). Um dos indícios é a proximidade gramatical ao crioulo cabo-verdiano, que ninguém acha ter alguma coisa que ver com o espanhol.

Ora, aqui dou um salto. Este facto delicioso sobre as línguas do mundo ajuda-nos a ver como cada país vê o mundo à sua maneira — por vezes, de forma muito subtil.

O leitor que queira saber mais sobre este crioulo pode rumar à Wikipédia portuguesa. A língua é descrita assim: «O papiamento é uma língua crioula derivada do português e de línguas africanas, com algumas influências de línguas indígenas da América, inglês, neerlandês e espanhol.»

A base é portuguesa. As outras influências são apenas isso: influências. O espanhol, esse, está no fim da lista.

Rumemos agora à Wikipédia castelhana. Aqui está a descrição do papiamento (em espanhol, no original): «Trata-se de uma língua crioula. É provável que o seu léxico provenha principalmente do espanhol, à mistura com palavras de origem portuguesa, indígena e de diversas línguas africanas.» A enciclopédia virtual dos nossos vizinhos continua, explicando que o papiamento «tem por base um crioulo africano-português levado para o outro lado do oceano pelos escravos e reforçado pelos judeus sefarditas que saíram dos enclaves holandeses do Brasil».

Bem, se virmos bem, os factos são parecidos nas duas versões: até os espanhóis apontam para os crioulos africanos de base portuguesa. Mas a versão portuguesa sublinha a origem portuguesa, enquanto a espanhola repara em primeiro lugar no léxico espanhol.

Nada a dizer: fazemos isto todos os dias. Aquilo em que reparamos, a maneira como contamos os mesmos factos — tudo depende muito da nossa perspectiva. Este facto da vida, multiplicado por séculos e séculos, leva a histórias contadas de maneira diferente dos dois lados da fronteira.

Não confundamos, no entanto, isto que acabei de dizer com alguma espécie de «vale tudo». Os factos existem… Por exemplo, sobre o papiamento podemos dizer com segurança que é uma língua com uma intrigante proximidade às nossas línguas ibéricas, com uma história que passa pelas conversas dos escravos, dos judeus sefarditas fugidos do Brasil, da mistura de europeus, africanos e nativos americanos. Uma língua fascinante que nós, portugueses do século XXI, conseguimos compreender às apalpadelas — e que nos lembra quão complicada, obscura e enredada foi a nossa História.

E pronto: o meu primo encontrou uma galiña num restaurante e acabámos todos por encontrar umas quantas palavras de sabor português e roupa tropical numa ilha das Caraíbas.

(Esta crónica foi publicada no Sapo 24. Recebi de alguns leitores apontamentos interessantíssimos sobre o papiamento — conto relatá-los aqui muito em breve. A foto inicial é de Curaçau.)

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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11 comentários
  • Caro Marco Neves
    Foi de facto no Sapo24 que dei com o seu artigo mas desisti de comentar quando o facebook se pendurou pelo meio.Estou em processo de divorcio ou pelo menos de abstinencia com tal aplicação.
    Sobre papiamento tanto quanto penso saber significa ” falamento” ou fala e é exatamente isso que significa na Guiné (ex portuguesa ) e creio que em Caboverde já que são criolos muito identicos. De acordo com um pequeno livro de frases feitas de português/ criolo que não sei onde pára, cerca de noventa porcento do criolo da Guiné é de origem portuguesa. Português antigo que ao longo de séculos foi -se midificando e ganhando corpo proprio. Na Guiné, papiar significa falar mas mesmo no interior remoto de Angola ouvi essa palavra há muito, muito tempo.
    No ano passado a minha filha, que morava em Manchester, trouxe de reboque duas irmãs que aqui vieram jantar a casa.
    As ditas moças afro-caribenhas deixaram a ilha de origem e instalaram-se no Reino Unido porque uma queria fazer teatro e a outra pretendia tirar um curso para leccionar inglês o que deverá ter acontecido com sucesso porque tenho noticias de terem partido para a china.
    O que importa mesmo é que para elas esse criolo ou papiamento é de origem portuguesa de há muitos seculos atrás, de uma epoca em que as caravelas aí procuravam abrigo ou agua potável.
    Desconheço se alguma vez Portugal reclamou aí algum território no entanto creio que não, no entanto a língua resistiu ao tempo e na actualidade esses povos estão a redescobrir a lingua portuguesa, ao que parece, com elevado interesse em a aprender.
    Dessa noite e desse jantar falámos de origens, habitos e tradições em que eu aproveitei a oportunidade para lhes apresentar o Marco e deu para ver que conseguiam entender alguma coisa dos seus artigos.

    • Se 90% do Kriol da Guiné fosse de origem portuguesa, ele certamente seria um dialeto do português e não uma língua. Talvez sim o léxico tenha essa percentagem, e digo-lhe que em Caboverde essa percentagem e bem maior, todavia as suas estrutura gramaticais são outras, provenientes das línguas africanas, etc, etc. para lhe dar um exemplo vou conjugar três tempos do verbo bai (ir)

      “Passado próximo”
      N bai
      Bu bai
      el bai
      nu bai
      nhos bai
      es bai

      “Presente contínuo”

      N sa ta ba.
      Bu sa ta bai
      idem

      “Futura proximo”

      N ta bai
      Bu ta bai
      idem

      Fika dretu / fique bem

      • Exactamente: tanto o crioulo da Guiné como de Cabo Verde são línguas inteiras, não são dialectos.

    • Muito interessante. Só agora li.

      As palavras “galiña” e “na man” são português (ou galego) puro. Passando para espanhol, vê-se-o nitidamente: “gallina” e “en la mano”.

      Julgo, contudo, que “na” é forma gramatical única para “em”. O cabo-verdiano diz “na Portugal”, que significa “em Portugal”.

      Quanto à terceira língua do letreiro, leio-a sem dificuldade. 😉

      Abraços firmes.

    • Judeus sefarditas, sim, mais especificamente, judeus portugueses (entre os quais muitos eram descendentes de judeus espanhóis que, expulsos do país vizinho, entraram em Portugal, em 1492. Os judeus holandeses do Brasil holandês eram judeus portugueses que se identificavam como portugueses e falavam português.

      Os holandeses, durante a dinastia filipina, tomaram muitas posições portuguesas na costa atlântica de África. Próximo a Cabo Verde, a Ilha de Goreia, no Senegal. Mais para sul, S. Jorge da Mina, S. Tomé, Luanda…

  • Obrigado, achei maravilhoso este texto e deliciosa (mesmo algo divertida) aforma como expôs este tão interessante assunto.
    Grato, um abraço!

  • Olá
    O gurú do papiamento, só conseguiu entender alguns aspetos da sua língua depois de descobrir a Língua Kabuverdianu, no romanse “odju d’agu” de Manuel Veiga, que leu se dificuldades.
    Dizem-me os caboverdianos residentes na Holanda que pode conversar sem grandes dificuldade com os nativos de Curacau, cada um falando a sua língua. no nivel escrito seria necessário um pouco mais de conhecimento,

    Convido-lhe para procurar num alfarrabista, o livro “Crioulo de Cabo Verde, surto e expansão / Antonio Carreira”

    KV:
    “Purfavor tene bu rasibu mo”

    • Errata:
      que leu sem dificuldades
      que podem conversar
      Purfavor tene bu rasibu na mo

      desculpe

  • O Marquês de Pombal nos proibiu de falar a língua geral, única língua ao sul do Rio de Janeiro. Os então paulistas engoliram seco e começaram a falar português. Mas havia sons muito complexos na língua oficial e, com medo da coroa lusíada, se esforçavam para bem falar. Hoje, a região mais rica do Brasil, tem um sotaque que vem daquela lingua geral. O paulista do interior reconhece-se facilmente. Além de ser rico, ao dizer porta ou volta, ele diz poRLta e voRlta. Pombal matou o nosso crioulo.

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