O Velho Marco do Saneamento

Ganha o contrato quem oferece a melhor proposta; perde quem não entrega o que foi combinado. Deveria ser tão simples

Por Diogo Mac Cord


Comunidade sem saneamento no Distrito Federal Cristiano Mariz/Agência O Globo

Durante minha infância, assistia muito a “De volta para o futuro”. Um clássico. Só que era uma trilogia: no terceiro filme, os menos atentos já não sabiam mais que personagem estava onde, nem fazendo o quê.

Pois o saneamento básico está nessa linha. Era um setor que não funcionava. Aí, veio o marco de 2007. Muito se discutiu, e choveram boas intenções. Em busca do consenso, porém, não se atacou o verdadeiro problema: a ausência de competição, que levava à perpetuidade do incumbente estatal.

Eis que, em 2020, depois de muito debate e muita negociação, foi aprovado o Novo Marco do Saneamento, que obrigava algo que, na teoria, deveria ser obrigatório desde a Constituição de 1988: que o serviço público de saneamento básico fosse licitado. Dessa licitação poderiam participar empresas públicas ou privadas. Ganharia a melhor oferta. Além disso, metas foram estabelecidas: universalização de 99% dos brasileiros com água, e 90% com coleta e tratamento de esgoto até 2033. Vale dizer que isso já representava três anos de atraso em relação às metas da Agenda 2030, mas era o possível.

De lá para cá, foram licitados estados tão diferentes quanto Amapá e Rio Grande do Sul, passando por Alagoas e Rio de Janeiro. Em comum, o enorme sucesso dos leilões. O setor privado se mobilizou. Afinal, quem consegue imaginar uma agenda mais ESG do que saneamento, que envolve social, ambiental e econômico numa escala nunca vista no Brasil? Só para ficar num exemplo, o Amapá tinha metade da população sem água e mais de 80% sem tratamento de esgoto — uma triste realidade que, agora, está sendo transformada.

Eis que, nesta semana — no melhor estilo “voltamos no tempo, doutor?” —, aparentemente o Novo Marco virou o Velho Marco, e o Novíssimo Marco se parece demais com o Velhíssimo Marco. As principais mudanças foram:

1) os contratos sem licitação voltaram a ser permitidos, num modelo mais radical do que antes — em que, no limite, o município nem precisa aceitar assinar o contrato;

2) o espaço preferido para acomodar o setor privado passa a ser a Parceria Público-Privada “administrativa”; antes limitada a 25% do total da operação, agora ela pode atingir 100%, num estranho modelo que ou duplica todo o custo pago pelo usuário (caso tenhamos duas empresas, uma pública e outra privada, prestando o mesmo serviço), ou leva a empresa pública à falência (caso ela terceirize integralmente seu serviço e não repasse seus custos dobrados ao consumidor); e

3) a comprovação econômico-financeira, antes necessária para que a empresa estatal pudesse permanecer com seus contratos (já que isso era a garantia de que o investimento seria feito), foi afrouxada — e, agora, pode ser apenas uma peça de ficção, com contratos prorrogados por décadas e uso de planos que não necessariamente se ancorem na realidade da empresa, entre outros malabarismos.

A razão das mudanças é que, aparentemente, criou-se uma narrativa de que o Novo-Velho marco era uma batalha entre empresas públicas e privadas. Não é verdade. A questão central sempre foi privilegiar as empresas eficientes e retirar do jogo as ineficientes — tanto que a regra que cancela o contrato de quem não cumprir as metas de universalização vale para todos. Ou seja: ganha o contrato quem oferece a melhor proposta; perde quem não entrega o que foi combinado. Deveria ser tão simples quanto isso — mas, aparentemente, não é mais.

Nessa viagem no tempo, vamos torcer para que, muito em breve, estejamos de volta a um futuro em que as praias estão limpas, e nossos rios urbanos translúcidos. Espero que não demore.

*Diogo Mac Cord, engenheiro, mestre em administração pública pela Universidade Harvard e doutor em engenharia pela USP, é sócio-líder de Infraestrutura e Mercados Regulados da EY

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