Desculpa começar assim, logo com uma pergunta, ainda mais uma pergunta dessas, tão íntima. Mas é que eu assisti um filme e fiquei intrigada.
A sua infância foi do tipo adaptada? Correu tudo bem? Ou você fez parte da parte que não conseguiu se encaixar direito?
Sabe, eu já escrevi sobre isso. E preciso te alertar, talvez eu escreva mais vezes, mas é que essa coisa de ser quem a gente não é me intriga demais. Também me intriga saber quem a gente é, já que apesar de parecer óbvio, não costuma ser tão claro assim.
Fiquei pensando em como seria se, na infância, ao invés de nos ensinarem a falar baixo, nos ensinassem a usar melhor a nossa voz. Como seria?
Ou se, ao invés de nos ensinarem a não fazer bagunça, nos ensinassem a colocar nossa própria bagunça em ordem quando cansássemos de brincar. Como seria?
A infância é aquela parte da vida que não volta mais e, ao mesmo tempo, nunca vai embora.
Eu, no auge dos meus 37 anos, idade em que não sou mais considerada nem uma jovem adulta, sou só adulta e ponto, só agora estou conseguindo entender o que é ser adulta. E cuidar da criança que fui.
Tem vezes que a criança tem vontade de chorar, espernear, brigar com todo mundo, exigir que o mundo seja diferente. E quando eu estou cansada, acabo ficando ausente. E lá vai ela, toma à frente, e sai derrubando tudo.
Hoje estou aprendendo a perceber o instante que antecede ao caos. Aprendendo, pois nem sempre consigo, mas quando percebo, olho para esses sentimentos e cuido deles com amor.
Estou aprendendo a ser para mim mesma a adulta que eu gostaria que os outros tivessem sido, pois a verdade é que até então eu apenas reproduzia as mesmas falas e as mesmas atitudes daqueles que também não conseguiram quebrar o padrão.
Existem adultos que falam frases como “gostaria que você não fosse/fosse menos (escolha uma palavra que te toca) para que você não sofresse no futuro” e não conseguem notar o tamanho da violência e do absurdo que compactuam.
A incoerência que existe neste mundo dos adultos só existe pois todos se esforçaram muito para se adaptar, foram tão violentados que reproduzem a violência e não toleram os fracos que resolveram ser quem são (e que deixam claro que, bom, essa sempre foi uma opção).
Não vai ter mundo saudável enquanto cada adulto não cuidar da sua dor, do seu trauma e da sua infância insegurança. Não vai ter saída enquanto cada um não conseguir olhar para dentro. E é isso o que aqueles que fogem à regra provocam: o confronto com o que foi varrido para debaixo do tapete psíquico. O reflexo no espelho da alma definhada.
Quando a gente conseguir olhar, e se acolher, e se amar, e se cuidar, também não haverá outra saída a não ser oferecer amor, e escuta, e atenção, e cuidado para as crianças com pouca idade e com muita idade também.
Sabe, já li sobre tudo isso que estou escrevendo, mas só agora percebo que nunca tinha conseguido colocar em prática. Não conseguia perceber internamente essa diferença de vozes e de vontades, essa diferença de recursos e respostas. E observar isso do lado de dentro é de um valor inestimável. Um portal para a real liberdade e autonomia.
Não é sobre engolir o choro. É sobre reconhecer o choro e entender que hoje eu tenho outras formas de responder à determinada situação. É bem mais fácil chorar, e colocar a culpa no outro, e colocar a culpa no mundo, e tentar mudar a reação de todos, mudar as expectativas, tentar convencer, pessoa por pessoa, que 1M de seguidores no Instagram não representa sucesso, que 1M na conta bancária também não representa sucesso, e ainda assim sentir o fracasso e ainda assim não conseguir sustentar a minha ideia de sucesso.
Parece papo de louco e peço desculpas adiantadas se você leu até aqui e não entendeu nada, ou pior, acha que tive um surto e que em breve recobrarei a consciência. Mas tenho observado como, em alguns casos, é mais fácil dizer que não sei o que quero quando apenas não sei como fazer o que quero, ou então, como levantar, lidar com a vergonha do tombo e tentar de novo.
Iluminar as dores e as dúvidas é um processo tortuoso e, vez ou outra, doloroso. Quando colocamos luz, conseguimos nos “pegar no pulo”. Perceber as desculpas, os desvios, o medo e a culpa. Mas é a única forma de caminhar com as próprias pernas, se movimentando para o lugar que aponta o coração.
Estou aprendendo a inventar a adulta que estou me tornando, não mais a partir de exemplos, mas a partir de uma escuta ainda mais sincera de dentro de mim. Tudo assim, no gerúndio, pois processos são processos, sempre no gerúndio.
Também é importante dizer que aprender e errar são irmãos, não tem jeito. É preciso uma dose de humildade e paciência, que, na maioria dos dias, eu tenho.
Como tem sido ser adulto para você? Você escuta a criança que foi? Consegue identificar este choro que não foi chorado lá atrás e que insiste em voltar nos momentos mais inconvenientes? Você tem adultos que te inspiram? Você tem sugestões de livros e filmes que te inspiram? Você se permite ser quem é ou se continua se adaptando? Responda este e-mail ou comente aqui embaixo. A troca é a beleza invisível dos encontros.
PS 1. Curiosidade
Escrevi o texto na segunda e só na quinta, dia 12, ao voltar nele para revisá-lo, notei que era justo o dia das crianças, veja que coincidência!
PS 2. Agradecimentos
E, para encerrar, fica aqui meu muito obrigada para meu companheiro de vida e processos, que me inspira a ser um ser humano adulto e autônomo cada dia melhor, Jaya.
E para minha amada terapeuta, Marcia, que me fez conseguir observar o contraste entre a adulta e a criança que existem em mim. E por ser também um modelo do que é ser uma mulher adulta neste mundo de meu deus.
Para continuar mergulhando
Tropa Zero – este foi o filme que me emocionou e me fez escrever o texto de hoje. Histórias como a de Christmas são a forma mais bonita de esperança.
Carta de Clarice Lispector – dica é da minha amiga querida Gabriela (que também me inspira) que leu com alguns comentários no seu canal no Telegram e parece que conversou com tudo o que eu vinha sentindo e escrevendo.
- pois, afinal, caminhamos pelas mesmas inquietações - pois, afinal, também caminhamos pelas mesmas inquietações. Inclusive, ela está lançando um livro que eu estou ansiosíssima para ler, pois sei que vai tocar fundo o coraçãoOutubro Rosa
Saiu mais uma entrevista, dessa vez para o podcast Subversivas, e eu gostei demais <3
E como já disse, semana que vem tem um papo sobre minha experiência e você pode saber o que não esperar neste post aqui
Ando pensando coisas parecidas sobre meu eu adulto e minha criança (ambos presentes aqui comigo). O quanto violamos nossas subjetividades na infância para nos encaixar em algo que na maioria das vezes nem é o que a gente quer. Meu compromisso agora com 35 anos e próximas dos 36 é me reconectar com a Ludmila criança, ouvir mais ela e tentar realizar as suas vontades. Obrigada pelo texto. Beijos.
Lindo e verdadeiro texto. Uma pérola, própria da Bruna Lauer. Sim, essa criança ainda vive aqui no meu íntimo. Essa criança que precisa ser acolhida, compreendida e apoiada. Tem o adulto também, claro. Mas tem uma criança que precisa de atenção e cuidados. Ver isso muda tudo ou pelo menos permite que se mude. Aos poucos.