O que você carrega de quem te criou? Tenho pensado muito nisso, convivendo todos os dias com esse verniz de saudade que me cobre as bolas dos olhos. Aos trinta e um, me sentindo a cada dia mais adulto. Mais longe dos meus e mais perto de mim. Chega me assusto quando me pego fazendo alguma coisa que é totalmente deles. Um desses traços, um hábito que pode parecer pequeno, mas acredito que tenha grande valor: a aversão total que minha mãe sempre teve pelo desperdício de comida.
Ao longo de toda a infância e adolescência, por mais que nunca tenha nos faltado nada, a vi fazer malabarismos criativíssimos para prolongar, multiplicar ou dar outra vida a um prato ou ingrediente cansado. Se comíamos fora e qualquer coisa sobrasse, ela nunca teve cerimônia de pedir que embrulhassem para viagem. Vergonha é jogar comida no lixo com tanta gente passando fome!, parece que a ouço falar.
Sinto que faço o mesmo naturalmente, na rotina corrente de quem cozinha e come pelo menos três vezes por dia. Nem sempre boto reparo. Congelo as claras de qualquer receita que use só gemas; estoco todas as cascas possíveis num saco hermético para quando precisar de um caldo fresco de legumes. Até uma banda de limão passando é digna de pena — espremo num suco, num copo d’água ou mando pro congelador. Isso se extende, inclusive, ao que nem é comida propriamente dita: sinto um prazer secreto, por exemplo, em aproveitar o calor do forno para secar aquele pano de prato molhado, fazendo deles janela e cortina.
Aprendi com minha mãe, que aprendeu com a mãe dela. Na cozinha da Dona Célia, minha avó que não conheci, mas vive em mim, tudo se aproveitava. Se sobrasse feijão, virava sopa. Arroz de acompanhamento, no dia seguinte, era prato principal: arroz de galinha ou um colorido Maria Izabel cravejado de milho e ervilhas. Pão dormido? Pudim de pão. Vinagrete de fradinho? Baião de dois. Banana que ia passando virava banana frita na manteiga. Manteiga que era um luxo, comprada de quilo uma vez por mês, num Pará onde a gordura de todo dia ainda era nativa da Amazônia, o óleo de patauá.
Na última semana, me peguei em uma manobra que podia ser totalmente delas: de um restinho de moqueca que sobrevivia há quase uma semana na geladeira, conservada por uma camada densa de dendê laranjinha, fiz um belisco de fim de tarde. Boiavam no caldo rico alguns pedaços de peixe, rodelas de cebola, tomate e pimentão já amolengados. Esquentei tudo num papeiro velho e pesquei o que havia ali, deitando num pratinho de ágata e cobrindo de um punhado de farinha fina. Quando terminei, o dilema: o caldo rico inteirinho na panela. Um pecado jogar isso fora, ela sussurrou no pé do meu ouvido.
Se estivesse satisfeito, faria o que ela teria feito: congelado esse copo de caldo para lançar mão dele em um futuro próximo, e pronto, não jogaria comida fora. Mas sobrava uma pontinha de fome, e fiz ainda melhor. Passei o caldo quente num crivo pequeno, direto sobre uma caneca grande de louça, onde costumo tomar café. Sentei-me com o caldo fumegando nas mãos, feliz e realizado de comer qualquer coisa até o talo. Fui sorvendo, golinho em golinho, sentindo os lábios colarem pelo colágeno do peixe. Sentindo o leite de coco já diluído e distante, o gosto marcante do dendê ainda inteiro, o frescor de umas folhinhas de coentro perdidas. Sentindo. Saudade dela.
Ela, incapaz de jogar aparas de qualquer coisa no lixo. De torcer o nariz para qualquer verdura feia. Era até piada na nossa casa o tamaninho dos potes em que guardava quantidades ínfimas do que porventura sobrasse. Todo mundo apostando que nada se faria com aquilo. E, pumba, ela sempre fazia. Virava tudo com ovos, enfeitava omeletes, lançava um tudão brilhoso de arroz ou só ia pondo no congelador, às vezes emboladinho num pedaço de papel alumínio, e selecionando milimétrica ao longo da vida o que punha onde, com a sabedoria de uma feiticeira. Sentindo a satisfação que senti ao matar aquela moqueca inteira. Minha mãe, filha da sua mãe. Matrilinha milagreira.
E você, o que carrega de quem te criou?
Menino, minha mãe é o oposto, muito doido isso. Foi super ferrada e agora acha humilhante aproveitar as coisas até o talo. É uma briga hehehe
Minha avó vivenciou a segunda guerra na Europa. Economizar, não desperdiçar, buscar alternativas diretamente da natureza eram regras de sobrevivência. Esses valores e saberes foram repassadas para minha mãe, que, por sua vez, foram repassadas para mim, e que, com a crescente insustentabilidade global, ganharam fundamentação e motivação maior ainda. Aliás, para mim, a verdadeira cozinha -- prova de criatividade -- está no reinventar uma refeição a partir das sobras de outra. Adoro. -- Querido! Falando em sobras, mando um link para vc: https://joybileefarm.com/make-gjetost-whey/?customize_changeset_uuid= Não sei se conheces gjetost, um "queijo" norueguês feito fundamentalmente do soro que sobra de outras confecções de derivados do leite. É muito gostoso, meio queijo, meio caramelo salgado -- uma delícia. Fiz iogurte e sobrou muito. Vou me aventurar. Quem sabe vc queira tbm um dia. Bju